

1. A ESTRUTURA DA PSIQUE
- A consciência é, em primeiro lugar, um órgão de orientação em um mundo de fatos exteriores e interiores. Antes, e acima de tudo, ela constata que algo existe – a sensação. Não se trata de uma atividade específica de qualquer um dos sentidos, mas da percepção em geral. Uma outra faculdade interpreta o que foi percebido – o pensamento. Graças a essa função o objeto da percepção é assimilado e transformado muitíssimo mais em conteúdos psíquicos do que através da mera sensação. Uma terceira faculdade constata o valor do objeto – o sentimento.
A reação de prazer e desprazer do sentimento corresponde ao máximo grau de sbjetivação do objeto.
O sentimento coloca o sujeito e o objeto em tão estrita relação, que o sujeito deve escolher entre a aceitação e a recusa.
Estas três funções seriam inteiramente suficientes para a orientação em qualquer circunstância, se se tratasse de um objeto isolado no tempo e no espaço. Ora, no espaço qualquer objeto está em conexão ilimitada com uma multiplicidade de outros objetos, e, no tempo, o objeto representa, apenas, uma transição daquilo que ele era antes para aquilo que será posteriormente. A maioria das relações espaciais e das mudanças temporais é, inevitavelmente, inconsciente no momento da orientação, embora as relações de tempo e espaço sejam absolutamente necessárias para determinar o sentido de um objeto.
A quarta faculdade da consciência, ou seja, aquela que torna possível, pelo menos aproximadamente, a determinação espacial e temporal, é a intuição. Esta é uma função de percepção que compreende o subliminar, isto é, a relação possível com objetos que não aparecem no campo da visão, e as mudanças possíveis, tanto no passado como no futuro, a respeito das quais o objeto nada tem a nos dizer.
A intuição é uma percepção imediata de certas relações que não podem ser constatadas pelas outras três funções no momento da orientação. (12)59,60
- A intuição decorre de um processo inconsciente, dado que o seu resultado é uma idéia súbita, a irrupção de um conteúdo inconsciente na consciência. A intuição é um processo de percepção, porém, não consciente e sim inconsciente. Ela é apreensão teleológica (que relaciona um fato à sua realidade) de uma situação extremamente complicada. (12)68
- No tocante ao psíquico, porém, tudo se nos afigura como voluntário e sujeito ao nosso arbítrio. Este preconceito universal provém do fato de confundirmos freqüentemente o psíquico com a consciência. Contudo, há inúmeros processos psíquicos, e até muito importantes, que são inconscientes ou conscientes apenas por via indireta. Sobre o que é inconsciente nada podemos conhecer diretamente, mas certos efeitos do inconsciente atingem nossa consciência e assim chegam ao nosso conhecimento. Desde que na consciência tudo se nos apresenta como voluntário, com certeza não encontramos aí, aparentemente, nenhum critério objetivo para o conhecimento de nós mesmos. Mas apesar disso, há um critério que nos permite chegar ao conhecimento da verdade sobre nós mesmos, porque ele é independente do desejo e do temor e, como produto da própria natureza, é incapaz de iludir-nos. Esta averiguação objetiva, nós a encontramos num produto da atividade psíquica, ao qual só em último lugar atribuiríamos tal relevância. Trata-se do sonho. (1)63
- Hoje em dia aceitamos que a consciência consta apenas daquele conjunto de imagens que estão associados diretamente ao “eu” (ego). Acham-se ligados ao eu os conteúdos psíquicos dotados de certa intensidade. Os demais conteúdos, porém, que não conseguem adquirir intensidade necessária, ou que já a perderam, são subliminares e pertencem à esfera do inconsciente. Reina entre consciente e inconsciente uma troca contínua e um deslocamento constante dos conteúdos. Denominamos de esquecimento (supressão) o processo de mergulho dos conteúdos conscientes no inconsciente. Falamos de idéias súbitas e impulsos quando imagens e tendências emergem a partir do inconsciente e penetram no consciente. (1)55
- Ao querermos desviar nossa atenção de alguma coisa, a fim de concentrá-la em outro objeto, temos de eliminar os conteúdos presente na consciência, pois se não fosse possível deixar de considerá-los, nem seria possível trocar de objeto conforme nosso interesse. Normalmente sempre resta a possibilidade de retornar os conteúdos eliminados conscientemente; eles podem ser reproduzidos sempre de novo. Se houver resistência para tais conteúdos, pode tratar-se de um caso de repressão. Em tal caso deve existir algum interesse em preferir o esquecimento.
A supressão de um conteúdo não causa nenhum esquecimento, ao passo que a repressão o produz.
É muito natural a existência do esquecimento normal, que nada tem a ver com a repressão.
A repressão consiste na perda artificial da memória, como uma amnésia que alguém sugere a si próprio. (1)114
- Essa visão do inconsciente e de sua relação com a consciência constitui, de muitas manei-ras, um refinamento das introvisões de Nietzsche. (8)150
- Para Jung, “a consciência se desenvolve a partir do inconsciente e é na criança que se dá esse desenvolvimento. Nos primeiros anos de vida quase não se verifica consciência alguma, apesar de que já muito cedo seja evidente a existência de processos psíquicos.
Mas esses processos não estão relacionados a nenhum “eu”, não têm um centro e por isso carecem de continuidade, sem a qual é impossível a consciência. Provém daí o fato da criança também não ter memória no sentido usual, apesar da plasticidade e receptividade para as impressões, de que está dotado seu órgão psíquico.
Somente quando a criança começa a dizer “eu” é que tem começo a continuidade da consciência, já perceptível, mas por enquanto ainda muitas vezes interrompida. Nesses intervalos se intercalam alguns períodos de inconsciência. Durante os primeiros anos de vida percebe-se claramente na criança como a consciência se vai formando por um agrupamento gradual de fragmentos. Esse processo propriamente nunca cessa no curso da vida inteira.
A partir, porém, da pós-puberdade torna-se cada vez mais lento, e desde então é sempre mais raro que novas partes da esfera inconsciente venham juntar-se à consciência. O maior e mais intenso desenvolvimento da consciência se dá até os 25 anos no homem e os 20 anos na mulher.
Nesse momento, são estabelecidos fortes vínculos entre o “eu” e os processos psíquicos, até então inconscientes” (1)55,56.
- Jung fornece mais conhecimentos a respeito do “eu”: Entendemos por “eu” aquele fator complexo com o qual todos os conteúdos conscientes se relacionam. É este fator que constitui como que o centro do campo da consciência, e dado que este campo inclui também a personalidade empírica, o eu é o sujeito de todos os atos conscientes da pessoa. Esta relação de qualquer conteúdo psíquico com o eu funciona como critério para saber se este último é consciente, pois não há conteúdo consciente que antes não se tenha apresentado ao sujeito (4)1.
- O ego (eu) não tem, disse Jung, uma existência a priori, mas emerge como um organismo em crescimento do ventre inconsciente da psique. Em suma, é um processo com uma história. Não é uma substância imutável, como um átomo ou partícula psíquica, mas sim uma função ou processo que está em desenvolvimento e que emerge da interação entre inconsciente e o meio externo.
O centro-ego, cristaliza-se a partir das profundezas escuras nas quais está, de alguma maneira, contido em potencial. Não tem existência por direito próprio e evolui a partir da infância como reação e demandas existenciais. Pode, no adulto plenamente desenvolvido, tornar-se uma função relativamente autônoma, mas, ao mesmo tempo, continua amarrado, como o que é movido àquilo que o move, ao inconsciente (8)183,184.
- É evidente que o fenômeno global da personalidade não coincide com o eu, isto é, com a personalidade consciente; pelo contrário, constitui uma grandeza que é preciso distinguir do eu. Tal exigência, naturalmente, só se verifica numa psicologia que se defronta com a realidade do inconsciente.
Mas uma diferenciação desta espécie é da máxima relevância para essa psicologia. Até mesmo para a aplicação da justiça é importante saber se determinados fatos são de natureza consciente ou inconsciente, como, por exemplo, quando se trata de julgar da imputabilidade ou não de um ato.
Por isso, propus que a personalidade global que existe realmente, mas que não pode ser captada em sua totalidade, fosse denominada si-mesmo (self). Por definição, o eu está subordinado ao si-mesmo e está para ele, assim como qualquer parte está para o todo (4)3,4.
- A explicação do si-mesmo em termos de uma pluralidade de complexos e fragmentos de personalidade é, contudo, apenas uma visão parcial da teoria de Jung. Falar no si-mesmo implica falar necessariamente em uma tendência para unidade e integridade. Como já dissemos várias vezes, essa unidade não é daquelas que dissolve todas as diferenças em uma unicidade mística, mas uma questão de compensação e equilíbrio num sistema que está em estado de tensão dinâmica. Não há processos psíquicos isolados. Todas as nossas percepções, pensamentos e sentidos estão embutidos na matriz total de nossa personalidade (8)189,190.
- O conceito de um todo psíquico não implica para Jung uma unidade inteiramente indiferenciada, mas dinâmico equilíbrio entre opostos. Disse, “Vejo em tudo o que acontece a interação de opostos”.
Jung, portanto, considerava o si-mesmo como uma arena de luta e conflito entre opostos polares, mas também como um sistema auto-regulador que buscava o equilíbrio através da interação dessas forças contrárias: Não há equilíbrio, nenhum sistema de auto-regulação, sem oposição. A psique é simplesmente um sistema de auto-regulação desse tipo, “à procura de equilíbrio entre várias tendências opostas: entre as tendências com vistas à unidade e pluralidade, entre consciente e inconsciente, os elementos masculino e feminino existentes na psique, entre razão e instinto, convenção e natureza, o bem e o mal. Dessa maneira, a psique exibe, nas palavras de Frey-Rohn, “não só tendência para polarização, mas também inclinação para chegar a um equilíbrio, até mesmo para estabelecer estados contínuos de equilíbrio”.
Como “sistema auto-regulador” a psique esforça-se para chegar a um estado de equilíbrio de suas próprias forças naturais.
O caráter antagônico da Natureza é descrito pela literatura, pela Psicologia e pela Filosofia. Segundo Jung, foi Heráclito quem primeiro descreveu a enantiodromia (função reguladora dos contrários), que adverte que todas as coisas, em algum momento, correm em direção ao seu contrário.
A essência desse antagonismo parece ter suas raizes no taoísmo quando afirma que tudo é criado da interação de opostos – Yin-Yang – que representam sombra e luz, respectivamente; o positivo e o negativo; o sim e o não; o bem e o mal; como os dois lados de uma moeda. Esses pares de postos são aspectos diferente da totalidade, são polos complementares da Natureza que nunca podem ser superados. São princípios do Universo e toda a Criação está sujeita a este contraponto (Angela Maria Monnerat).
(Nota: Tao quer dizer sentido do mundo, o Caminho... o de um trilho que – sendo estável em si mesmo – conduz diretamente de um começo até a meta... No confucionismo, Tao tem um sentido de mundo interior=caminho certo). (13)91,92
Essa idéia teve plena florescência nas últimas décadas, reunindo introvisões da biologia, ecologia, cibernética e engenharia.
Sistemas dos tipos aqui mencionados são muitas vezes chamados de cibernéticos. O termo, cunhado por Norbert Wiener (1948) e derivado da palavra grega Kybernan, que significa “governar”, refere-se ao fato de que, através de vários dispositivos de retroalimentação, um orgnismo é capaz de controlar seus próprios estados interiores e atingir um estado de equilíbrio, ou homeostase, a despeito da autonomia relativa de suas partes constituintes. (Nota minha: este tipo de equilíbrio é conhecido, também, por “equilíbrio dinâmico”).
A natureza cibernética do pensamento de Jung é evidente no trecho seguinte: “A característica do si-mesmo, intrinsecamente voltado para uma meta e a ânsia de atingi-la... que não depende da participação da consciência... Na realidade, a enteléquia (a forma ou razão que determinam a transformação ou a criação de um ser) do si-mesmo consiste em uma sucessão de acomodações intermináveis, o ego e o si-mesmo mantendo laboriosamente equilibrados os pratos da balança se tudo correr bem. Uma inclinação grande demais para um lado ou outro é amiúde um exemplo do que não se deve fazer.
Talvez, a implicação mais importante desse princípio esteja na idéia de “individuação”.
Individuação é a meta para atingir a unidade psíquica por meio da reconciliação de opostos e, consequentemente, o atingimento da individualidade, a função de tudo que exis-te, potencialmente, na psique e, portanto, o significado da existência humana (8)192,193,194.
- O conceito de individuação de Jung começa com a idéia de que a perfeição não é possível e que embora possamos colocá-la diante de nós como meta, devemos reconhecer que o que torna a jornada valiosa é a própria jornada, com todas as suas vicissitudes, e não algum destino definitivo.
Disse Jung: “O significado e a finalidade de um problema parecem estar não na sua solução, mas em trabalharmos nele “incessantemente” (8)198.
- Individuação significa nada menos do que exigir conscientemente realizar ou concretizar o pleno potencial de cada um. Significa, nas palavras de Jung: “o desenvolvimento de todo ser humano individual, para o qual uma vida inteira, em todos os seus aspectos espiritual, social e biológico, é necessária. A personalidade é a realização suprema da idiossincrasia (maneira de ver, sentir, reagir, própria de cada pessoa) inata do ser vivo. É um ato de grande coragem executado frente à vida, a afirmação absoluta de tudo o que constitui o indivíduo (8)201.
- A individuação é um processo natural, que surge basicamente de um desabrochar interior, um desenvolvimento auto-dirigido, e não imposto artificialmente de fora. É uma função que temos em comum com todas as coisas vivas. É uma expressão do processo biológico, através do qual todas as coisas vivas tornam-se aquilo que, desde o princípio, foram destinadas a ser. (8)205
- Considerava a vontade como facilitando a emergência dos instintos na consciência, refletidos sob a forma de emoções, imagens e fantasias, e em integrá-las em um si-mesmo plenamente operacional.
Em 1916 deu a esse processo o nome de função transcendente. Falou nela como sendo uma espécie de diálogo, levado a efeito mais através de imagens do que de palavras, no qual as funções consciente e inconsciente transcendem suas velhas posições de indiferença mútua, ou mesmo de hostilidade, e entram em sociedade (8)202.
- O inconsciente é a mãe criadora da consciência. A partir do inconsciente é que se desenvolve a consciência durante a infância, tal como ocorreu nas eras longínqüas do primitivis-mo, quando o homem se tornou homem. (1)120