

APLICAÇÃO DE GELO E HEMATOMA
Afirmo, a aplicação de gelo não traz qualquer benefício na prevenção ou no tratamento do hematoma, como é apregoado frequentemente.
Definimos hematoma como coleção de sangue em qualquer parte do corpo, mais frequentemente no tecido abaixo da epiderme. Essa coleção sanguínea decorre da rotura de um ou de vários vasos sanguíneos com maior diâmetro do que o da arteríola pré-capilar, ou o da vênula pós-capilar. Devido à coleção sanguínea, há formação de relevo.
Já a equimose, é a sufusão hemorrágica (infiltração de sangue nos tecidos, principalmente subcutâneo) sem coleção sanguínea, consequentemente, sem relevo. Essa infiltração sanguínea decorre da rotura de vasos de pequeno calibre: arteríolas pré-capilares, capilares e vênulas pós-capilares (microcirculação), e por terem calibres pequenos, não conduzem à coleção sanguínea.
Na figura abaixo , apresentamos um desenho que reproduz as artérias pré-capilares (ou arteríolas terminais), capilares e vênulas pós-capilares, ou seja, a microcirculação.
Para melhor entender esses tipos diferentes de vasos sanguíneos, mostramos no quadro abaixo as suas características.
Calibre e composição das diferentes camadas da parede dos diversos vasos sanguíneos.
Fonte: Ross, M. H., Pawlina, W., Histology: A text and atlas. (Modificado por Famadas)
(*) Pericitos: muito se desconhece sobre essas células, Há dificuldade, inclusive, de diferencia-la de fibras musculares lisas e fibroblastos.
Suas funções também são desconhecidas. São atribuídas a eles a capacidade de contração e relaxamento, bem como de diferenciação em outros tipos de células. Para ver uma grande revisão sobre essa célula em 2011, clique aqui.
Para dar mais detalhes sobre as três camadas das artérias e das veias mostradas no quadro anterior, apresentamos a figura abaixo: Fonte: Aula de Anatomia
Relatamos, anteriormente, os dados mais importantes, referentes aos vasos sanguíneos, e na página Hemostasia 1 (Colocar link), os dados referentes ao mecanismo hemostático, para explicarmos porque a aplicação de gelo não interfere na gênese do hematoma nem em seu tratamento.
Vamos retornar ao tema principal.
A grande diferença entre hematoma e equimose está no aspecto apresentado pelas hemorragias no tecido - o hematoma apresenta relevo e a equimose, não. É fácil concluir que o relevo do hematoma é consequência do grande acúmulo de sangue devido à rotura de grandes vasos sanguíneos, e a falta de relevo das equimoses, deve-se à rotura de pequenos vasos sanguíneos, que infiltra o tecido mas não provoca acúmulo de sangue.
Ao colocar no buscador Google "aplicação gelo hematoma" tivemos como resposta:
Aproximadamente 99.700 resultados(0,36 segundos). Colocando as palavras em inglês -"ice hematoma", tivemos como resposta: aproximadamente 378.000 resultados(0,43 segundos).
São muitas as referências sobre aplicação de gelo para evitar e curar hematoma nos sites brasileiros e nos americanos; nos sites americanos, além da aplicação de gelo, é comum a citação de compressão.
Ao pesquisarmos artigos científicos no Medscape, maior site médico do mundo, e muito respeitado, nada específico sobre o assunto foi encontrado.
Em outros sites de importância científica, destacamos apenas esses dois:
1 -Heparin and haematoma: does ice make a difference? De 1995. (Heparina e Hematoma: O gelo faz diferença?) Esse foi o único encontrado, mas faz referência à prevenção de hematoma, com aplicação de gelo, após injeção de heparina.É dito - Resultados mostraram que quando o gelo foi aplicado, não houve diferença significante na incidência, ou no tamanho do hematoma, entretanto, houve diminuição da dor.
2 -O tratamento mais efetivo para um hematoma subcutâneo, é simplesmente -TEMPO.
Entretanto, se há um grande hematoma causando muita dor e inibição da mobilidade, deve ser drenado por um médico.
3 -Em uma revisão da literatura sobre a aplicação de gelo, em 2003, Adriana Lopes e colaboradores (artigo brasileiro de revisão da literatura médica) dizem: http://www.wgate.com.br/conteudo/medicinaesaude/fisioterapia/crioterapia2.htm
O MEDLINE contém 51 % das publicações da área médica mundial, com excelentes periódicos e suficientes para um trabalho de graduação. Infelizmente não encontramos bases científicas correspondentes ao uso descontrolado do gelo terapêutico em nosso meio. Isso nos faz refletir se estamos realmente reabilitando.
É inacreditável que vejo isso, ainda, nos meus 58 anos de formado em medicina e com especialização em Hematologia.
Com imensa unanimidade é dito que o tratamento e a prevenção do hematoma está na aplicação de gelo. Isso se baseia na ideia de que o gelo promove vasoconstrição (conforme dissemos) e com isso, impede a formação do hematoma.
Também dizem que é o melhor tratamento. Pasmem, ainda dão detalhes dizendo quais os tempos de aplicação, os tempos dos intervalos e as repetições das aplicações. Ressalto, nenhum artigo cita qualquer trabalho médico que confirme isso.
Como quase todas as pessoas, inclusive médicos, acham que a aplicação de gelo tem esse efeito curativo, vocês devem se perguntar - Por que isso não é verdade? Ou, por que isso se mantém por todo esse tempo?
Sou obrigado a retardar a minha explicação pela ausência de efetividade da aplicação do gelo no hematoma, para responder a essas perguntas.
A resposta é: porque esses "conhecimentos" se transformaram em um MEME.
Vamos, então, conceituar meme, conforme usamos, já que existem diversos conceitos.
Para tal, vamos reproduzir alguns segmentos do artigo de Jerônimo Teixeira, publicado pela Revista Super Interessante em setembro de 2003, mas vocês poderão ler o texto integral, clicando aqui. ,
"Uma teoria intrigante e revolucionária sustenta que as idéias têm vida própria, reproduzem-se como material genético e, para sobreviver, precisam infectar o maior número possível de cérebros. O termo “meme” foi proposto pelo zoólogo Richard Dawkins, da Universidade de Oxford, em seu livro de 1976, O Gene Egoísta."
"Se o gene é uma unidade de informação biológica, precisaríamos de uma unidade equivalente no campo cultural. Dawkins propôs a palavra 'meme' para designar essa nova entidade. O termo vem do grego mimeme (imitação), reduzido a duas sílabas para que soasse parecido com “gene”."
"Tudo o que é ensinado ou transmitido socialmente pode ser um meme."
Logicamente, se diversas autoridades médicas disseram, há mais de cinquenta anos, que o gelo previne ou cura hematoma, porque ele promove vasoconstrição, e ninguém combateu essa ideia, e mais, a difundiram, foi criado um meme! Repito, e dou ênfase à essa expressão -"porque ele provoca vasoconstrição".
Então, a ação anti-hemostática (que leva a estancar o sangramento) se resume a uma simples vasoconstrição?
Claro que não, mais na frente vamos dar detalhes para explicar essa negação.
No passado, como se dizia que a vitamina K era importante para a síntese dos fatores da coagulação, FII, FVII, FIX e FX, quando uma pessoa sangrava, aplicava-se nele a vitamina K na veia. Nada adiantava para a maioria dos distúrbios hemorrágico. Esses distúrbios não tinham qualquer relação com deficiência de vitamina K. Hoje em dia a vitamina K somente é usada para os raros casos de deficiência, particularmente na hipoprotrombinemia do recém-nascido.
Do mesmo modo, quando souberam que o mecanismo da coagulação dependia da presença do cálcio para ser ativado, passaram a aplicar cálcio endovenoso para estancar hemorragia. Eu assistia a esse absurdo! Nada adiantava porque todos nós temos cálcio suficiente para ativação do mecanismo da coagulação; e, se por acaso o nível de cálcio for decrescendo intensamente, e atingir níveis baixíssimos, a morte se dá por tetania, antes de sangrar, porque níveis baixíssimos de cálcio são suficientes para que o mecanismo de coagulação não seja comprometido. Hoje em dia o cálcio não é mais usado para esse fim.
Esses memes foram desaparecendo, mas a aplicação de gelo continua.
Retornando ao nosso assunto - a vasoconstrição que acontece no mecanismo hemostático (repito, o mecanismo dirigido para coibir a hemorragia), se dá naturalmente em consequência de reflexo imediatamente após lesão do vaso sanguíneo e da ação de algumas substâncias, e somente tem valor hemostático nos vasos de pequeno calibre, ou seja, da microcirculação (o hematoma, como disse, decorre da rotura de vasos de médio e grande calibres).
A vasoconstrição não tem a capacidade de promover e manter a hemostasia porque o grande diâmetro dos vasos e a pressão sanguínea no interior desses vasos, suplanta a vasoconstrição e a tentativa do organismo de formar o trombo hemostático.
Caberia aqui uma pergunta: por que tanto os vasos sanguíneos, de pequeno e grande calibres, possuem camadas musculares? A resposta é - porque a musculatura concorre com a vasoconstrição dos pequenos vasos para coibir a hemorragia.
Por outro lado, ela é importante ao promover vasoconstrição e vasodilatação, nos grandes e pequenos vasos sanguíneos, com a finalidade de controlar o fluxo sanguíneo, diminuindo o volume de sangue em alguns territórios e aumentando no cérebro, ou tentando manter a volemia normal.
Se a hemostasia não for suficiente para coibir a hemorragia, não será por prolongar a vasoconstrição que atingiremos essa meta. Ao pretender que a vasoconstrição tenha essa importância, estaremos desprezando o valor de todo o complexo mecanismo hemostático (detalhes nas páginas Hemostasia 1 e 2 LINK DAS PÁGINAS), como aconteceu no passado com o cálcio e com a vitamina K.
Aproveito aqui para dizer que, ao contrário do que se apregoa, esse trombo não é constituído de coágulo sanguíneo e sim de plaquetas, com pequena quantidade de fibrina gerada pela trombina na fase inicial do processo e maior na fase posterior. Por outro lado, a ação da trombina não é restrita, apenas, à geração de fibrina; ela tem ação de grande importância na consolidação do trombo plaquetário.
Agora vamos à parte derradeira.
Como proceder para prevenir ou tratar um hematoma se a aplicação de gelo não tem o menor sentido?
Nossa conduta será considerada em duas situações: 1 - hematoma ainda não formado e 2 - hematoma já formado.
1 - Hematoma ainda não formado. Isso acontece quando o indivíduo recebe um trauma intenso, principalmente nos membros inferiores, e se impõe uma atitude imediata.
O procedimento correto nesse caso é comprimir, demoradamente, o local com a palma da mão ou com uma bandagem elástica.
As pessoas mais idosas se lembram que as nossas mães e nossas avós, para evitarem a
formação do famoso "galo" na testa (hematoma), comprimiam o local do trauma com uma faca. Elas estavam certas, apesar de que a compressão com a palma da mão é mais eficaz.
Por que a compressão demorada é importante para prevenir o hematoma após o trauma?
Vamos detalhar essa situação.
Com o trauma, havendo lesão de um vaso de médio e grande calibres, onde o mecanismo hemostático e a vasoconstrição serão incapazes de impedir a hemorragia, o sangramento vai se fazendo e o acúmulo de sangue aumentando cada vez mais.
Esse acúmulo de sangue somente parará de crescer quando os tecidos locais oferecerem resistência. Assim, um trauma no couro cabeludo, que é um tecido que oferece muita resistência, formará um hematoma menor do que, por exemplo, no pescoço onde o tecido oferece menos resistência.
Agora fica fácil entender a importância da compressão para impedir a formação do hematoma. Antes de esperarmos que os tecidos ofereçam a resistência máxima, nós estaremos, com a compressão, oferecendo a resistência e, com isso, o hematoma não se formará. O tempo da compressão não está bem definido. Nos casos em que intervi, em trauma na testa e na canela, fiz compressão de ccerca de 15 minutos; nenhum hematoma se formou.
O hematoma se formou porque um vaso de médio calibre foi rompido. O grande tamanho do hematoma deve-se ao tecido frouxo dessa região. Se fosse na testa, onde o tecido é mais denso, o hematoma seria menor.
É preciso salientar que estou me referindo, apenas, à aplicação de gelo em hematoma e não em locais onde se formam processos inflamatórios secundários a traumas.
Isso é visto, frequentemente, em traumas nos esportes onde a perna é muito acometida e muito mais a musculatura da coxa.
Assim, está correta a aplicação de gelo quando há, somente, processo inflamatório e não se espera a formação de hematoma.
Logicamente que é impossível afirmar, logo após um trauma, que vasos de médio e grande calibres foram lesionados. Mas nesses casos, está indicada compressão com atadura elástica para prevenir hematoma, ou sufusão hemorrágica, e aplicação de gelo para tratamento do processo inflamatório traumático. Em um forte trauma, estaremos correndo um risco se não for feita a compressão.
2 - Hematoma já formado.
Aqui, também, o mito da aplicação de gelo perdura e é dito que o hematoma vai desaparecendo à medida que o gelo vai sendo aplicado. São fornecidos muitos detalhes sobre o modo e o tempo da aplicação do gelo.
Se fizerem pesquisa na internet sobre "gelo e hematoma" vocês ficarão impressionados com a firmeza e os detalhes a respeito da aplicação de gelo. Cuidado! Não se deixem contaminar com essas informações; caso contrário, o MEME persistirá.
Aqueles que fazem tal afirmação desconhecem a evolução natural de um hematoma.
Depois do hematoma ter se formado, o sangue vai se espraiando na sua periferia e essa área, em torno, vai aumentando cada vez mais apresentando cor púrpura. Com o passar do tempo, o hematoma vai diminuindo e a cor púrpura da infiltração vai ficando esverdeada, depois amarelada, até desaparecer.
Alguns hematomas, principalmente os de maior tamanho, podem sofrer um processo fibroso, posteriormente calcificação, e um nódulo endurecido perdurar por muito tempo.
Se o hematoma for de tamanho muito grande, o paciente deverá procurar um serviço médico para avaliar a necessidade de drenagem.
Mas, fica aqui ressaltado: o hematoma e a equimose, vão sendo reabsorvidos com o passar do tempo. Não há nada que possa ser feito que leve à aceleração do processo.




O rosto mostrado acima é de uma lutadora de MMA, que apresenta um hematoma abaixo da pálpebra, acima do osso malar. Esse hematoma poderia ser evitado com uma compressão de cerca de 20 minutos, feita com a mão. O profissional que prestasse o primeiro atendimento, poderia iniciar a compressão, com a mão espalmada. Em seguida, colocando a paciente sentada, pegaria a mão dela, com os dedos juntos, e colocaria sobre o local do traumatismo, permanecendo comprimindo por cerca de 20 minutos.
